A PARTEIRA 1

Acorda.
Tá na hora... você vai se atrasar de novo.

Revirou-se na cama, puxou o lençol e cobriu a cabeça.

Hoje é feriado, meu feriado.

Feriado? de que? Deixe de preguiça e cuide

Ah, não me amole... eu matei uma pessoa ontem.


Virou-se e fez cara de espanto...

É isso mesmo... depois que ele saiu do quarto... eu a mandei pro inferno... seu filho ainda amamentava.


A velha rua continuava suja. Latas de tintas velhas, móveis velhos, restos de comida, ratos, esgoto e água escorrendo pelos aceiro da calçada. Os meninos corriam de um lado para o outro. Nada mudou por ali. Nada. Cheguei em frente ao antigo barracão onde costumávamos jogar futebol de salão. A ruína tem seus herdeiros, é verdade, e aquelas crianças estavam herdando todo aquele luxo. O sol daquele dia estava se despedindo. Ouvi gritos de mulheres velhas, negras, chamando seus meninos afortunados para o banho. Alguns meninos atendiam ao chamado... outros sentavam nas calçadas molhando os pés na lama. Soltei minha maleta na calçada perto de um desses meninos. Um deles veio por trás de mim, sorrateiro, eu me virei e fiz cara de espantada. Ele sorriu, baixou a cabeça e perguntou quem eu era. Respondi sorrindo... me diga garoto, aonde estão as pessoas que moravam ali na casa verde? A senhora é a dona? Não. Ela deve ser a louca que fugiu do abrigo. Não diga isso. Meninos, eu sou a louca que fugiu do abrigo... Todos se levantaram e correram até dobrar a esquina.

A noite chegou. Fria e suja. Lixo pra todo lado. Poucas luzes restavam. Um quadro estranho e familiar ainda respirava naquele ambiente. As janelas fechadas deixavam a rua mais solitária. Apenas alguns meninos e eu. Sentados com os pés na lama, mais rala agora, escorrendo pra um ralo na esquina. Alguns ratos zonzeiam a calçada a procura de restos. O frio foi aumentando e a molecada da rua foi desaparecendo entre as sombras e esquinas. Fiquei só. Meu primeiro dia como fugitiva. De volta a cena de onde tudo havia começado. Tudo que plantaram contra mim. Tudo que me fizeram acreditar. Lembrei de uma canção que minha mãe cantarolava antes de sua agonia para a morte. A voz dela roía minha cabeça como um serrote na madeira verde, infinito, tosco, doía, doía. Eu a calei. Ela me olhou pela última vez agradecida, sua lágrima era de felicidade, eu sei, ela parou com aquela música infeliz... Jesus vem nos salvar, o cordeiro de deus vem nos salvar, - Encontrei um menino deitado embaixo de uma choupana ele respirava calmamente. Me aproximei e deitei ao seu lado.


Quantos policiais na frente da casa da dona França. Três viaturas. Uma samu. um rabecão. Tem muita gente ao redor. Disseram que a dona França foi assassinada. Estão levando Deise para dentro do camburão. Ela sabe de alguma coisa. A mais velha não apareceu, dizem que durante a noite, ela pegou um táxi e sumiu. Com certeza vão encontrá-la. Raquel, a mais velha, será?


Acordei antes do sol clarear. Minhas mãos estavam congeladas. A criança ao meu lado parou de respirar. Soltei um suspiro e me sentei, acendi um cigarro... vi um garoto de longe que me olhava assustado. Eu o chamei ofereci um cigarro ele se aproximou. Conhece esse infeliz? Sim senhora. Quem era ele? O tintin era filho do açougueiro. Hum, sei. e agora o que farão com ele? Eles chamam a polícia e levam pra universidade. A gente sempre recebe uma grana quando um de nós morre de frio. A senhora viu que ele morreu de frio, né? Claro. Claro, eu não toquei nele a noite inteira. A barra do dia despontava por trás das casas velhas, úmidas de sereno, pichadas, sem rebocos, cheias de mofo, algumas luzes se apagavam e um cheiro desgraçado de café começava a fazer raiva. Era preciso sair dali, logo os policiais estariam para recolher o corpo do menino... fui indo em direção da praça da estação aonde eu havia chegado. O bar ao lado do barracão abriu. O velho barrigudo colocou a garrafa de café sobre o balcão bem na hora que eu entrei... Um café senhora? Sim, dos grandes. Uma sombra branca passou diante dos meus olhos. olhei pro alto e não vi nada. Essas coisas de novo. Não sou de crer em vida depois da morte. Morreu acabou. Lembro bem de quando fui socorrer a prima de minha tia, sua casa velha, sem iluminação, de barro, coisa muito ruim. Ela estava com três dias que chorava e sangrava sem deixar o menino sair. Eu fui ver aquilo de perto. Tinha só doze anos. Mas eu estava curiosa. O café senhora. Sim, obrigado. Quando cheguei lá tinha umas duas mulheres segurando suas pernas ela gritava, gritava, gritava... teve um momento em que ela diminuiu a voz e eu aproveitei para me encostar na cama... ela me olhou triste e feliz... eu entendi o que ela queria, o que ela me pedia, com os olhos, olhos vermelhos e secos de dor, ACABE COM ISSO DE UMA VEZ,  era isso que ela me pedia. As mulheres continuaram lá fora, rezando, cantando... eu sai correndo bem no meio delas... elas pararam de cantar e começaram a rezar e a rezar... uma delas se levantou e entrou no quarto, a criança estava deitada sob o corpo da mãe de olhos arregalados e sem vida. A polícia foi chegando. Eu estava olhando o menino falando com uma moça policial. Ele apontou para a esquina e depois para a praça. A policial nem se virou. Tomou nota e entrou no carro. Alguns minutos depois uma camionete com um adesivo da Universidade Campinas do Sul, chegou e levou o corpo do moleque.


 


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